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Os Agarrados

Ao longo da história, os nomes que atribuímos às realidades humanas moldam o modo como as compreendemos. As palavras não são meros veículos neutros de comunicação, mas estruturas que sustentam e delimitam o pensamento. No domínio das adições, esta verdade torna-se particularmente evidente. As designações que escolhemos para referir as pessoas com perturbação de adição com substâncias espelham a forma como a sociedade as vê, mas também orientam a maneira como a ciência as estuda, avalia e intervém junto delas.


Durante décadas, as pessoas com perturbação de adição foram descritas através de termos impregnados de juízo moral. Drogado, alcoólico, toxicodependente, viciado. Cada um desses vocábulos transportava consigo uma história de marginalização, uma fronteira simbólica que separava o “nós” socialmente aceite do “eles” que haviam falhado. A linguagem científica, por muito que procurasse objetividade, refletia muitas vezes o mesmo olhar moralizante que perpassava o senso comum.


Com o tempo, e em grande parte graças à consolidação de abordagens mais humanistas, o discurso foi-se transformando. Passou-se a falar de pessoas com perturbação de adição, enfatizando o sujeito antes da condição. O foco deslocou-se da culpa para a compreensão, da moral para o modelo biopsicossocial. Esta mudança, aparentemente semântica, é na verdade uma profunda revolução epistemológica e ética. A forma como nomeamos o outro é também a forma como o reconhecemos na sua humanidade.


Contudo, a história das adições é dinâmica e cíclica. À medida que as substâncias deram lugar a novas formas de dependência, surgiram também novas palavras. O desenvolvimento tecnológico trouxe para o centro do debate fenómenos como o uso problemático da internet, a adição aos videojogos e outras manifestações do comportamento aditivo sem substância. As fronteiras entre o que é patológico e o que é parte da vida quotidiana tornaram-se mais difusas. O léxico científico expandiu-se, mas o senso comum, sempre mais veloz e mais económico na linguagem, encontrou a sua própria designação: os agarrados.


Curiosamente, este termo, que em Portugal ecoava nas décadas de oitenta para descrever quem vivia aprisionado pelas drogas, regressa agora com nova roupagem. Já não se aplica às ruas marcadas pela heroína, mas aos ecrãs luminosos dos dispositivos digitais. As crianças e os jovens são descritos como estando “agarrados” às tecnologias, como se nelas se anulassem, como se a virtualidade fosse uma nova forma de perdição.


Quando o termo é usado por profissionais de saúde, o fenómeno ganha contornos particularmente relevantes. Dificilmente se trata de uma intenção depreciativa; na maior parte das vezes, é um reflexo inconsciente de um imaginário coletivo que associa o excesso tecnológico à perda de controlo. Contudo, mesmo sem intenção, as palavras têm peso. Elas constroem narrativas, e as narrativas moldam percepções, políticas, e práticas de intervenção.


Dizer que alguém está “agarrado” implica uma imagem de passividade, de incapacidade de escolha, de aprisionamento. Mas nem sempre a relação com a tecnologia é de submissão. Muitas vezes, o tempo despendido online é uma extensão legítima da vida social, uma via de comunicação com os pares e a família, uma forma de lazer, de expressão e até de pertença. Reduzir essa complexidade ao rótulo de agarrado é, de certa forma, repetir o erro histórico de reduzir o sujeito à sua perturbação.


A evolução terminológica no campo das adições mostra-nos que o progresso científico só se torna ético quando é acompanhado de um progresso linguístico. Nomear é compreender, mas também é cuidar. A ciência que se pretende humanista deve vigiar o seu próprio vocabulário, pois nas palavras se inscreve o modo como se acolhe o outro.


Os agarrados de ontem e os de hoje talvez partilhem o mesmo destino simbólico: o de serem espelhos onde a sociedade projeta os seus medos e fragilidades. O medo da perda de controlo, o receio do desconhecido, a nostalgia de um tempo em que a vida parecia mais simples e os limites mais claros. A verdadeira libertação não está apenas em tratar a adição, mas em libertar o olhar que a define. Enquanto as palavras permanecerem presas a estigmas antigos, continuaremos todos, de algum modo, agarrados.


Pedro Rodrigues, psicólogo clínico


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