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O que fazes quando tens as mãos livres?

Nas últimas décadas, a escola tornou-se também palco de debates que extravasam a sala de aula. Entre esses debates, o recreio tem surgido como espaço simbólico onde se projectam as tensões do nosso tempo. Não basta ensinar a ler, escrever e calcular. É preciso igualmente aprender a habitar os intervalos, os tempos mortos, os vazios que se preenchem com encontros ou desencontros.


A proibição do uso de smartphones nos recreios do primeiro e segundo ciclo inscreve-se nesta tentativa de devolver ao corpo e à relação presencial a centralidade que parecia perdida. A criança, liberta do pequeno ecrã luminoso, reencontra o cimento do pátio, a textura da bola de borracha, o riso e o empurrão de quem passa a correr. Contudo, a questão não se esgota na retirada do dispositivo. Se o objecto é retirado, mas o vazio que o sustentava não é compreendido, o risco é criar novos problemas. Há escolas onde o desaparecimento dos telemóveis coincidiu com o reaparecimento de velhos fantasmas. O bullying, que tantas vezes se havia deslocado para o espaço digital, regressou com a força de quem se encontra novamente com a oportunidade de dominar o outro cara a cara.


É por isso que os recreios não podem ser pensados como simples espaços de controlo, mas como territórios de experimentação social. Um recreio sem telemóveis não é necessariamente um recreio saudável. Torna-se apenas um espaço de proibição. Para que a experiência seja realmente formativa, é preciso criar condições para o jogo, para a diversidade de brincadeiras, para a existência de cantos de recolhimento e também de zonas de movimento intenso. Uma criança ansiosa ou deprimida não encontrará no vazio do recreio uma cura espontânea. O risco é sentir-se ainda mais deslocada, ainda mais visível, ainda mais sem lugar.


A ansiedade e a depressão entre crianças e jovens não são meramente efeitos colaterais de um uso desadequado da tecnologia. São sintomas de um mal-estar que atravessa famílias, ritmos de vida, exigências académicas, inseguranças sociais. Quando uma escola se limita a retirar o telemóvel, está a tratar a febre sem compreender a infecção. Pode conseguir uma pausa na hiperconexão, mas não responde à solidão que tantas vezes persiste.


Recriar os recreios é tarefa exigente. É preciso imaginar como o espaço físico pode ser aliado da saúde mental, como pode encorajar encontros saudáveis e proteger diferenças. Talvez seja necessário investir em zonas verdes, materiais lúdicos, jogos colectivos organizados, mas também espaços de liberdade criativa. Talvez seja essencial dar voz às próprias crianças, perguntando-lhes o que gostariam de fazer quando não têm o telemóvel nas mãos.


A pergunta que dá título a este texto revela a profundidade do desafio. O que fazes quando tens as mãos livres? Podes construir uma amizade, inventar uma história, trepar a um muro, dar um abraço, ou simplesmente deixar que o tempo passe devagar. Mas também podes sentir o peso do vazio, a estranheza de não saber o que fazer, a exposição a quem não te acolhe. Entre estes dois extremos reside a responsabilidade da escola. Não basta retirar o ecrã. É preciso criar um palco para que a liberdade se torne possibilidade e não ameaça.


Talvez a grande missão dos recreios contemporâneos seja esta: transformar mãos livres em mãos criadoras, mãos que se encontram, mãos que desenham outros futuros possíveis.


Pedro Rodrigues, psicólogo clínico


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